Esses dois quadros têm nomes semelhantes (Descanso na fuga para o Egito e Fuga para o Egito, respectivamente). A visão de ambos, de um logo após o outro, realça o contraste. Na verdade, assim estão expostos no museu da Fundação Calouste Gulbenkian, um de costas para o outro, separados por uma parede. Você vê um. Dá a volta e se depara com o outro. Acaba voltando para conferir novamente o primeiro. E, se ainda tem sensibilidade debaixo da casca endurecida pela rotina robotizante do mundo frenético, percebe o convite à reflexão sobre esses dois lados da mesma parede.
José e Maria abandonam a sua terra e partem para um êxodo forçado (e às avessas) rumo ao Egito, com Deus no colo. O Deus feito menino foge com eles. O Rei dos reis fugindo do rei bravento. Será que seus pais faltaram ao culto da vitória? Será que não oraram direito? Não determinaram? Não persistiram ou exercitaram a fé? Não completaram a corrente? Não passaram adiante aquele e-mail cheio de anjos? Não visitaram a catedral não sei das quantas? Não compraram a fitinha, o sabãozinho, a coluninha ou sei lá mais o quê?
Maria tem fé. Mas deve ser assustador levar Deus no colo. Deve ser assustador pensar que ele depende de seu peito, de seu calor, de sua memória, tão humana e tão comum. Não importa se se assustam. José é bem disposto e vai com a esposa rumo a uma terra distante. Provavelmente se juntarão à enorma colônia de judeus que vivem no Egito. Encontrarão apoio. Mas isso não elimina o trauma da retirada. Fica a família, ficam os clientes do moço, fica a terra conhecida. Cercam-nos os temores e perigos do caminho. Mas, como levam o Caminho com eles, é certo que estão bem cuidados. Se podem compreender já o propósito do Eterno, eles sabem que não estão sós.
Mas o Deus no colo também é menino, é bebê e chora, tem fome, dá trabalho e gera ansiedade. É frágil. E a rota árida é ameaçadora. Há escuridão e tensão. Ele é homem. Eles são falhos. Há luz e cuidado. Ele é Deus. Eles estão convictos.
Escuridão. Ele conhece a precariedade da vida humana desde o começo. Ele conhece o caminho dos que vão. Ele entende dos retirantes famintos, do peão de obra que atravessa a metrópole rumo ao trabalho massante e, na volta, fica duas horas de pé no ônibus por causa do alagamento, da senhora (uma de nossas senhoras) que equilibra a lata d'água na cabeça enquanto pisa a poeira triste do sertão, do menino que vai à escola longe de havaianas remendada com preguinho, porque o prefeito desviou a verba do transporte escolar, do...
Ele conhece. Ele foi ao Egito. E ele veio a nós para isso. Fez sua tenda por aqui.
Há escuridão. Há claridade.
Mas uma coisa é certa: a Graça que nos traz o perdão e o acolhimento nos levará até o fim e nos dará descanso.
No amor daquele que se fez retirante para achegar-se aos pequeninos,
e desejando um fim de ano cheio de saboroso saber,
Cesar
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