Não é do feitio deste blog definir sua pauta com base nas notícias que a grande mídia transmite. Mas, no presente caso, uma notícia de ontem me fez lembrar que queria ter escrito sobre uma da semana passada (acho). Então, escrevo sobre as duas.
Ontem, o diretor dinamarquês Lars von Trier - responsável pelo único musical que figura na lista de meus filmes prediletos (Dançando no Escuro) - se enrolou com a imprensa. Ele queria que seu comentário fosse recebido com bom humor. Mas isso é difícil quando ele diz que, querendo ser judeu, se descobriu nazista (referindo-se ao fato de que soube que seu pai biológico era alemão). A falha na comunicação dessa frase desencadeou tentativas de explicação que culminaram com a afirmação: "É, sou nazista!". Posteriormente, um pedido de desculpas, no qual Lars diz que não é anti-semita nem nazista.
Não acho que, no começo, sua intenção fosse de todo maléfica. Parece-me que seu humor sombrio o levou, contudo, a um buraco de difícil saída. O episódio não tira dele o aspecto de gênio ousado que carrega, a meu ver, desde Dogville e Manderlay. Mas me faz lembrar que o melhor comentário que já li sobre os eventos orquestrados por Hitler continua sendo a obra de Primo Levi. Muito do resto é conversa de boteco, sr. von Trier.
Vamos ao Woody! Há alguns dias, apareceu no Yahoo! uma nota dizendo que o lendário e ainda vivo diretor havia mencionado o livro de um escritor brasileiro afro-descendente, Machado de Assis, em uma breve lista de livros que "ecoaram nele" (alguma ideia melhor de como traduzir "resonated with me"? Apesar de muito literal, acho que "ecoar em mim" traz ainda alguma semelhança de sentido.). Dizia o Yahoo! que a fonte era o The Guardian. Fui ao site desse jornal inglês, que, por sua vez, remete ao site The Browser para a leitura da entrevista completa. Há algo de interessante na conversa. É mencionável a maneira como o diretor teve contato com o livro. Um brasileiro desconhecido lhe enviou um exemplar com um bilhete dizendo que ele iria gostar. Leu e gostou! Outro dado curioso é o fato de que o livro é referido como um romance cômico. É claro que há humor ali, mas duvido que um leitor brasileiro jovem o catalogaria como "cômico". Claro, o tradutor provavelmente usou um registro de linguagem mais próximo do usado atualmente entre os falantes de inglês. No nosso caso, a distância centenária entre nosso português e o de Machado pode dificultar o acesso imediato às risadas ou ao sorriso sarcástico. No mais, Allen é bem sensato ao dizer que o livro não o "influenciou", mas que aborda um assunto de que ele gosta, e que esse assunto é tratado com grande sagacidade, originalidade e sem sentimentalismo. Esse assunto, que permeia as obras tanto de Machado quanto de Woody, é, conforme sugere a resposta a uma das perguntas, existencial. De fato, é esse tipo de questão que mobiliza artistas ("artistas", não "celebridades". No Brasil o povo confunde essas coisas!) ao longo dos séculos.
A pergunta que me ocorre é: Como fica a arte produzida por um cristão, o qual tem suas questões existenciais (teoricamente) resolvidas na cruz? A diferença estaria só na motivação ou essa diferença de partida alteraria a condição ontológica do produto artístico?
Com ou sem arte,
Descendendo de judeus, alemães, negros, índios ou polinésios,
Rindo de Assis ou sendo motivo de chacota para Allen,
"Creio ... na ressurreição da carne...".
P.S.: Não esqueci do Pai Nosso.
Eu, enquanto não-tão-jovem bibliotecário, poderia até classificar “Epitaph of a Small Winner” como "comic novel" levando em consideração minhas releituras da obra na vida adulta. Se o único parâmetro fosse a leitura do livro na adolescência, com certeza o resultado seria diferente.
ResponderExcluirEntretanto, não vejo a diferença entre o português de Machado e o atual como o maior obstáculo para se encontrar o humor nas Memórias Póstumas.
É claro que com o passar dos anos minha compreensão do texto tornou-se mais clara. Mas o maior obstáculo, pelo menos na minha experiência pessoal como leitor do autor em questão, foi o romantismo comum aos mais jovens. Foi necessário viver um pouco mais, decepcionar-me um pouco mais, experimentar um pouco mais do niilismo machadiano antes de entendê-lo. Por isso mesmo nunca recomendo a leitura de Machado de Assis para aqueles que não chegaram aos 20. E ainda acho pouco.
Marcos,
ResponderExcluirÉ... Pode ser uma questão de experiência. Faz sentido sim, pois me lembro de sentir uma certa frustração no decorrer dos episódios (isso em tempos de Cefet). Confesso que, depois de vivido, só li alguma novela curta ou conto do Machado. Quando der, vou voltar ao "Memórias..." para ver se o riso vem mais fácil que antes.
Mas não deixo de achar que a linguagem influencia na compreensão de cenas pontuais, ao menos em parte. O humor joga com o tempo. Se além do tempo esperado da compreensão normal da mensagem, gasto outro tanto para entender o significado de uma frase, o efeito cômico pode vir defeituoso. Mas vou fazer o teste um dia desses! Ótima observação a sua!
Abraço!