O ponto de partida para esta reflexão será a música "Paciência", do cantor e compositor pernambucano Lenini. É ele que eu convido hoje para nossa cozinha. É ele que, segundo penso, dará alguma boa instrução ao hermeneuta e ao cozinheiro.
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não pára
Com essa música lenta, Lenini faz lembrar da pressa, que curiosamente esquecemos experimentar, embora nos sufoque todo o dia (às vezes também à noite). Esquecemos dela justamente por estarmos tão apressados o tempo todo. E assim seguimos, em uma vida quase mecanizada, guiados por conselhos que nem percebemos escutar, mas que nos redirecionam e condicionam como controles remotos que estão em posse de uns poucos. E o hermeneuta e o cozinheiro com isso? Bem, a resposta mais óbvia seria: é preciso tempo para cozinhar e para ler. Mas eu a completo: é preciso tempo e paciência para bem cozinhar e bem ler.
Na cozinha, a paciência nos permite esperar. Esperamos o fermento fazer seu efeito nas massas, o creme chegar à consistência exata, o assado estar no ponto etc. E não importa nossa ansiedade. Em alguns casos, de modo algum conseguiríamos reduzir prazos sem afetar os resultados. E então, em meio a vasilhas sujas, frustrados diante de um pão murcho, nos lembramos da observação do Nazareno: "Quem aí, dentre vocês, que ficando preocupado vai ser capaz de acrescentar uns poucos centímetros a seu tempo de vida?" (Mt 6:27). É preciso ter paciência.
O leitor, por sua vez, só deixa de ser mediocre quando desenvolve sua capacidade de ser paciente. Passar os olhos por um texto é diferente de ler, assim como ver é diferente de observar atentamente. Em Mediã, Moisés viveu uma das experiências mais conhecidas da Bíblia: a cena da sarça ardente. Muitos a veem como um milagre, uma demonstração de poder e sacralidade do Eterno. Mas é bem provável que se tratasse também de um teste de atenção. Se você se interessa por entender minimamente essa leitura, gaste alguns segundos com o parágrafo seguinte. Se acha desnecessário ou tem pressa demais, salte-o.
No capítulo três de Êxodo, conta-se que Moisés viu uma sarça que ardia sem se consumir e propôs a si mesmo dar a volta para ver (“darei a volta e verei”) o que acontecia ali. A atitude é observada por IHWH, que reage de forma interessante: “E viu IHWH que ele deu a volta para ver, e o chamou Deus...” (cf. Ex 3:1ss). De forma sutil, a construção parece colocar a fala de IHWH somente após a constatação da insistência de Moisés em ver, o que pode sugerir que o fenômeno se tratava de um teste, para se averiguar a capacidade de observação do futuro legislador. Ou seja, muitos poderiam ver o fenômeno e sequer observar que o fogo não consumia a planta (leva um tempo para perceber isso). Poderiam ver e pensar: "Olha só, um arbusto queimando". E desviar o olhar. (observação: Este parágrafo faz parte de um texto sério meu ainda não concluído nem publicado, por isso, fica difícil apresentar uma referência)
Se Moisés não tivesse paciência, se julgasse não ter tempo para observar melhor aquele fenômeno, o que (não) teria acontecido? Semelhantemente, nós, diante dos textos (e especialmente diantes das Escrituras), muitas vezes não gastamos o tempo necessário para perceber que há algo mais, algo extraordinário (ainda que em sua profunda simplicidade) entre as linhas que se nos apresentam. Se sem fé é impossível agradar a Deus, podemos dizer que sem paciência é impossível entender sua Palavra.
Sem paciência, sem calma, sem a devida percepção de que o tempo pode ser administrado de modo diferente, não seremos jamais capazes de cozinhar bem, nem de ler com o cuidado que a lida com as sagradas letras solicita.
Será que é tempo que lhe falta pra perceber?
Será que temos tempo pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara... tão rara
Caro Blogger,(gostaria de saber seu nome para poder citá-lo)suas palavras preencheram um vazio dentro de mim que devido a pressa cotidiana, não pude identificá-la. Deus te abençoe.
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