Torah em Pergaminho, na Biblioteca Nacional, Buenos Aires
Aviso: Se você não está disposto/a a ler com atenção, não leia. Se você é muito jovem, não leia sozinho/a. Se você se inquieta pela mesma pergunta, leia. Se já tem a resposta e nem se questiona mais, não leia. Se não consegue ler um texto minimamente complexo (ou seja, se só lê tabloides e literatura de massa, e tem os apresentadores da TV como importantes pensadores), não leia.
Algumas
pessoas andaram dizendo que eu não sou tão ortodoxo quanto sugere minha adesão religiosa (Sou membro ativo em uma comunidade protestante ortodoxa, conservadora, litúrgica e confessional. E me sinto muito bem acolhido ali.). Por isso, resolvi responder essa pergunta.
Muitos a usam justamente para isto: para marcar o limite entre os
conservadores e os liberais. É uma frase até bonita. O defensor da
verdade diz “A Bíblia não contém a palavra de Deus. Ela é a
palavra de Deus”, e todos ficam satisfeitos com essa confissão de
sua fé e conservadorismo. Não mais suspeitaremos de suas tendências
liberalizantes. Eu poderia fazer isso. Poderia até colocar essa
frase estampada aqui no blog. Confesso que pensei em fazê-lo. Mas
minha mente me fez questionar a pergunta, o que me impede de
respondê-la de forma tranquila.
Sim, eu
acho que a pergunta está errada, pois é tendenciosa ao apontar
somente a duas opções, as quais, segundo penso, não refletem a
complexidade da verdadeira questão: a inspiração e a
transcendência/imanência do espiritual. O conservador que se vale
dessas palavras está a dividir a cristandade em dois grupos: os que
aceitam que toda a Bíblia é a palavra de Deus (adeptos o mais das
vezes ao método histórico-gramatical) e os que, motivados pelo
deslumbrante mundo da crítica textual (e do método
histórico-crítico) a recortam e encontram partes que não seriam e
outras que seriam a palavra de Deus. O problema é que essa divisão
pode não ser suficiente. Eu, por exemplo, creio na inspiração de
toda a Bíblia. Sim, toda ela, desde Bereshit barah Elohim...
até ...toû kuríou Iesoû metá pánton [amén] (o
que indica que restrinjo a inspiração ao texto nas línguas
originais – fato que também pode ser questionado, claro). Contudo,
não afirmo que a Bíblia em sua materialidade seja a palavra de
Deus.
Calma,
não estou dizendo que ela concorra com outras coisas que seriam
também “palavra de Deus” (não concordo com a Igreja Católica
Romana que reconhece a Santa Tradição e o Santo Magistério como
palavra de Deus). O que digo é que a materialidade textual da Bíblia
não pode ser diretamente igualada à “palavra de Deus”. Se assim
o fizermos, reconheceremos uma variação de estilos estranha na
“palavra de Deus”, bem como formas textuais pobres e erros
linguísticos (tudo bem, o sociolinguista não diria “erros”, mas
variantes socialmente menos valorizadas - por exemplo, o uso de certos
“aoristos 3” bem peculiares do NT grego e da literatura judaico-helenística). Além do mais, se reconhecermos que o texto concreto da
Bíblia é a palavra de Deus, teremos que nos enlutar, por
reconhecermos que pequenas partes da palavra de Deus foram mutiladas,
alteradas e perdidas no processo de transmissão manuscrita (Virão os apologetas dizer que as perdas são mínimas, sem nunca ter lido um manuscrito, mas somente um manual tendencioso. A eles direi: não há perda mínima quando (e se) se trata da Palavra de Deus).
Por
isso, penso que a Bíblia não é a palavra de Deus, mas sim
que a Bíblia (toda ela e somente ela) “comunica” a palavra de
Deus. Mas penso no “comunicar” além da mera transmissão de
sentido, mas também no ato de “comunhão”. Ambiguo? Recorro a analogias.
Assim como o Logos
(Deus-Filho) se encarnou, tornando-se forma humana, a “Palavra de
Deus” se enletrou, tornando-se forma textual. Deus-Filho se humana,
enquanto a Palavra de Deus se textualiza. Jesus, mesmo sendo Deus,
não deixa de ser homem, em carne. A Palavra, mesmo sendo Palavra de
Deus, não deixa de ser Bíblia, um conjunto de livros com aspectos
estilísticos e todas as suas variações peculiares, contribuições
de seus múltiplos autores humanos. "Creio nas Santas Escrituras, as quais foram concebidas pelo Espírito Santo, nasceram de diversos autores, foram copiadas, transmitidas..." (desculpem-me o respeitoso plágio auto-explicativo).
Qual
a forma de relacionamento entre a palavra de Deus e a Bíblia? Se não
digo que uma é a outra, que verbo usarei? Não sei. A forma mais
próxima que consegui para expressar o que penso, de modo a fugir da
ambiguidade do termo “comunicar” que usei há pouco, seria a
seguinte comparação: Somos alma e somos cérebro. O cérebro
comanda o corpo. Mas também dizemos que a alma comanda o corpo.
Afinal, qual a relação entre cérebro e alma? A alma está no
cérebro? Como? A alma, podemos dizer, se emplasta no cérebro e, por
ele, se manifesta no corpo. Talvez, poderíamos dizer que,
semelhantemente, a Palavra de Deus se emplasta na Bíblia, em toda
ela, para manifestar-se no corpo – a Igreja.
Assim,
entendemos que alguém pode ler a Bíblia sem ligar a mínima para a
Palavra de Deus que nela se emplasta, como um neurologista pode
destroçar um cérebro sem dar-se conta da existência de uma alma,
e, para completar, como um historiador pode propor algo sobre o Jesus
histórico sem dar-se conta da realidade do Deus-Filho.
Um
professor meu dizia sorridente que a poesia não existe no livro, na
estante, mas somente “no-qui-qui-ela-é-lida'”. Dizia para nos
motivar a ler poesia. Ajudado pela ideia, hoje penso que ler a Bíblia
não é ler a palavra de Deus. Porque a palavra de Deus só existe
“no-qui-qui-a-Bíblia-é-lida-com-fé". Sem a fé – presente de
Deus -, a Bíblia será lida como um livro antigo e terá o efeito de
um livro antigo. Com a fé e o auxílio do Espírito Santo,
percebe-se a Palavra de Deus que se enletra na Bíblia e, por isso, o
efeito será especial, alcançando o espírito.
- A
Bíblia é a palavra de Deus ou contém a palavra de Deus?
- Precisamos
conversar... Na minha opinião, a Bíblia, na sua integralidade
inspirada por Deus, realiza a Palavra de Deus no mundo, pelo
intermédio da Igreja que a lê com fé. NÃO OBSTANTE, continuarei respondendo que sim,
a Bíblia É a palavra de Deus, mas o farei por catacrese, não por
exatidão no uso próprio das palavras. E isso o farei para evitar que meus
companheiros de caminhada se escandalizem (e para evitar que não me
entendam e pensem mal de mim).
Sou
conservador ou liberal?
Na minha mente, sou somente cristão, ainda
que o pior de todos. Na mente de Deus, sou um filho, graças a
Cristo, por obra do Espírito Santo.
Abraço,
Cesar M. R.
Sola Scriptura, eu creio nisso!