Gosto de ler/ouvir gente inteligente, mesmo quando não somos completamente concordes. Por isso, transcrevo integralmente uma entrevista que saiu na revista eletrônica do Instituto Humanitas da UNISINOS. Aí vai!
Protestantismo: é tempo de refletir. Entrevista especial com Cláudio Kupka, Martin Dreher e Walter Altmann
Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero
pregou 95 teses na porta do castelo de Wittenberg, dando continuidade
ao movimento da Reforma, que buscava a “renovação do cristianismo
ocidental”. Ao final desse processo, o cristianismo se dividiu em
confissões religiosas, “tendo cada uma sua própria confissão de fé: Confissão de Augsburgo (luteranos), Confissão Helvética (zwinglianos), diversas confissões calvinistas/reformadas e a Confissão de Fé Tridentina (católico-romana)”, explica Martin Dreher, professor especialista em História da Igreja, em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail.
Quase 500 anos depois, os luteranos do Brasil estão engajados na
elaboração de atividades que possam, nos próximos seis anos, relembrar e
refletir sobre este momento histórico que deu origem ao protestantismo.
“Esta articulação tem sido um bom exercício de caminhada conjunta. Nem
sempre convergimos em todos os aspectos, é verdade. (...) No entanto,
desde o início da mobilização, temos experimentado uma alegria e
confiança crescente em nossos diálogos cheia de gratidão a Deus pelos
sinais positivos desta caminhada”, disse o pastor Cláudio Kupka, autor do selo comemorativo dos eventos da Reforma, em entrevista também concedida por e-mail.
Em relação às comemorações, o teólogo Walter Altmann
assinala, que “toda celebração deve vir acompanhada da reflexão quanto à
vivência autêntica da fé hoje. Ou seja, não pode consistir num retorno a
1517, mas, ao contrário, evocando o acontecimento de 1517, projetar-se à
frente, com um compromisso renovado”. Para Dreher, de 2011 a 2017, período que precede os 500 anos da Reforma, os luteranos “devem perguntar o que significa esse solus Christus
em contexto, no qual o nome de Deus é ‘mercado’, em que o alvo da ética
não é a preservação da boa criação de Deus, em que conceitos como
‘graça’, ‘fé’, ‘escritura’ precisam urgentemente ser recuperadas e em
que precisamos perguntar pelo rosto de Deus”.
Dreher também comenta a recente visita de Bento XVI ao mosteiro de Erfurt e é categórico: “Ele não visitou o Lutero
de Wittenberg (...), fez uma visita ao Martin Luder, monge agostiniano
eremita da observância, que ali viveu antes de 1517, filho obediente da
igreja romana”. E conclui: “Foi uma visita política”. E Altmann reforça: “Muito mais significativa seria, como é igualmente óbvio, uma visita a Wittenberg, que foi a cidade em que Lutero atuou como reformador. Quem sabe em 2017? Seria algo de extraordinário impacto nas relações ecumênicas”.
Martin Dreher é professor aposentado do Programa de
Pós-Graduação em História da Unisinos. É graduado em Teologia, pela
Escola Superior de Teologia – EST, e doutor em Teologia com concentração
em História da Igreja, pela Ludwig Maximilian Universitat München. É
organizador, juntamente com os pesquisadores Imgart Grützmann e J.
Feldens, do livro A imigração alemã no Rio Grande do Sul. Recortes (São Leopoldo: Oikos, 2008). Entre suas obras, destacamos Populações rio-grandenses e modelos de Igreja (Porto Alegre: EST; São Leopoldo: Sinodal, 1998), História do povo luterano (São Leopoldo: Sinodal, 2005) e A Igreja no mundo medieval (São Leopoldo: Sinodal, 2005).
Walter Altmann é pastor luterano brasileiro,
moderador do Conselho Mundial de Igrejas – CMI e ex-presidente da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. É doutor em Teologia pela
Universidade de Hamburgo, Alemanha. De 1995 a 2001, exerceu o cargo de
presidente do Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI, com sede em
Quito. De 2003 a 2007 foi membro do Conselho da Federação Luterana
Mundial – FLM, com sede em Genebra, Suíça. Entre suas obras, citamos Lutero e libertação: Uma releitura de Lutero em perspectiva latino-americana (Editora Sinodal, 1994).
Cláudio Kupka é bacharel em Teologia pelas
Faculdades EST e atualmente é pastor da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil – IECLB na Paróquia Matriz em Porto Alegre e
integrante da Comissão Coordenadora dos Festejos dos 500 anos da Reforma
Luterana.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual o significado da Reforma Protestante para o cristianismo e como esse momento se reflete ainda hoje?
Martin Dreher – O que se designa de “Reforma
Protestante” faz parte de um conjunto histórico que podemos qualificar
de crise e renovação do cristianismo ocidental, abarcando os séculos XV e
XVI. Seus primórdios mais remotos podem ser situados por volta do ano
1300, quando surgem os primeiros estados nacionais em Portugal e na
França. Aí encontramos também as primeiras igrejas nacionais ou
territoriais comandadas pelos reis que passam a exercer o supremo
episcopado em seus territórios. Os estados e igrejas nacionais surgem
porque o Sacro Império Romano-Germânico se encontra em crise.
Em crise vão se encontrar também os Estados Pontifícios, instituição
feudal em busca de afirmação frente a outros estados feudais. “Igreja” é
instituição por cujo controle diversos clãs, principalmente italianos,
se digladiam. É nesse contexto que surge o clamor por uma reforma da
Igreja “na cabeça e nos membros”. Esse clamor não é apenas de caráter
moral, mas teológico. As primeiras tentativas de reforma vão ser feitas
na Espanha por Isabel, a Católica e por seu confessor, o Cardeal Ximenez de Cisneros. Elas vão ser seguidas na Alemanha (Lutero), Zurique/Suíça (Zwínglio e os anabatistas), Genebra/Suíça (Calvino), nos Países Baixos e na França (reformados) e no Concílio de Trento sob a liderança da Companhia de Jesus.
Ao final desse processo vamos encontrar o cristianismo dividido em
confissões religiosas, tendo cada uma sua própria confissão de fé: Confissão de Augsburgo (luteranos), Confissão Helvética (zwinglianos), diversas confissões calvinistas/reformadas e a Confissão de Fé Tridentina
(católico-romana). Cada confissão de fé vai retratar o que é comum às
diferentes confissões, mas também as divergências. É a partir do comum e
das divergências que desde o século XX elas têm procurado dialogar
entre si, buscando a unidade, tropeçando, contudo, em conceitos como
igreja, sacramento, ministério/ordenação. Na pluralidade existente
reflete-se, contudo, característica essencial do que designamos de
“Modernidade”, na qual se reflete o anseio humano por “opção”, também a
opção quanto à expressão da fé.
Walter Altmann – A Reforma Protestante
se constituiu num decidido esforço por restituir a integridade da
Igreja, em consonância com o Evangelho. Houve, naturalmente, um protesto
veemente contra abusos que eram praticados, como o comércio de
indulgências. Contudo, isso só se deu porque foi acompanhado por uma
radical redescoberta do Evangelho da graça divina, acessível a todos
mediante a fé. Isso revolucionou a cristandade e acabou gerando,
contrariamente à vontade dos Reformadores, uma nova confissão religiosa.
Hoje, acoplado aos esforços ecumênicos, o legado da Reforma à
cristandade é precisamente essa busca perseverante da integridade da
Igreja, em consonância com a Escritura, como fonte normativa da fé.
IHU On-Line – Em que consistiam as 95 teses pregadas por Lutero no dia 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg?
Martin Dreher – A partir das 95 teses de 31 de outubro de 1517 podemos caracterizar o movimento iniciado por Lutero de “penitencial”. Para alcançar perfeição na vida cristã, o movimento monástico iniciado por Bento de Núrsia
desenvolveu a prática da confissão, mais tarde também assumida pelos
leigos e, finalmente, tornada obrigatória pela instituição eclesial. O
Sacramento da Penitência envolvia diversos momentos: a contrição do
coração por causa dos pecados cometidos, a confissão oral perante um
confessor, a imposição de pena, satisfação por obras e a absolvição. Por
causa da dificuldade que por vezes ocorria para cumprir a pena imposta e
a satisfação necessária, desenvolveu-se na Idade Média
prática das indulgências que nada mais são que a substituição de uma
pena/obra por outra. No contexto do incipiente capitalismo as
penas/obras puderam ser substituídas por importância em dinheiro, do que
surgiram “cartas de crédito” ao portador ou para almas do purgatório
para pena/obra a ser imposta ou não cumprida no caso dos mortos. No
território alemão, monges dominicanos foram incumbidos, como se
corretores fossem, da colocação de tais indulgências. Além de professor
universitário, detentor da Cátedra de Leitura da Bíblia, na Universidade
de Wittenberg, Lutero era também sacerdote em uma das paróquias da cidade.
Ao impor penitência a paroquiano, este lhe afirmou não necessitar cumpri-la, pois adquirira indulgência do pregador Johannes Tetzel OP. Indignado, o professor Lutero elaborou
95 teses acadêmicas que visavam debate acerca do valor das
indulgências. Normalmente, tais teses eram afixadas na porta da igreja,
onde delas se poderia tomar conhecimento para posterior participação no
debate. Não há certeza dessa afixação. É possível que Lutero
as tenha enviado a seu arcebispo e bispo, esperando posicionamento e
que só posteriormente divulgado. O que não sabia era que estava a
intervir em interesses de diversos partidos. Alberto de Brandenburgo, que já era detentor de dois bispados, conseguira ser, ainda, designado primaz da Alemanha, na sé de Mainz (Mogúncia).
Para essa designação fez empréstimo junto à casa bancária dos Fugger.
Para quitar o empréstimo solicitou autorização de Leão X para vender indulgências, através dos dominicanos. O resultado da venda seria dividido entre os Fugger e a Cúria Romana, pois Leão X mandara demolir a Basílica de São Pedro, erguida por Constantino I,
e dar início à construção da atual Basílica de São Pedro. Assim, o
papa, o arcebispo, os Fugger e a ordem dos dominicanos sentiram-se
atingidos por Lutero.
Teses
Lutero foi acusado de suspeita de heresia, citado a
comparecer a Roma em curto espaço de tempo e as coisas se precipitaram.
Tudo isso porque quis esclarecer como diz a primeira de suas 95 teses: “Quando Nosso Senhor Jesus Cristo diz ‘Fazei Penitência’ quis que a vida dos crentes fosse um contínuo arrependimento”.
As teses ainda não apresentam o que seria, depois, a teologia
reformatória, mas são estopim para que se tente definir teologicamente
quem é Deus, quem é Jesus, o que são graça e fé, o que é justiça de
Deus, qual o lugar da Sagrada Escritura, o que é Igreja, qual a
importância dos sacramentos, qual a função do ministério ordenado.
Walter Altmann – Com suas 95 teses, pregadas à porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Lutero
propunha, consoante os costumes acadêmicos da época, um debate
teológico acerca do valor das indulgências. O que deveria ser um debate
acadêmico disseminou-se como rastilho de pólvora e se transformou num grande movimento popular. Nelas, Lutero
combatia precisamente o comércio de indulgências, pois, segundo ele,
isso anulava, na prática, tanto a graça divina como a própria
penitência. A primeira das teses afirma, então, que, quando Jesus
exortou a fazer penitência, queria que “toda a vida dos fiéis fosse penitência”.
IHU On-Line – Para os luteranos, qual a importância de celebrar a data de 31 de outubro e, em breve, os 500 anos da Reforma?
Martin Dreher – A data 31 de outubro de 1517
foi comemorada pela primeira vez em 31 de outubro de 1617. No início, a
data não teve importância, mas suas consequências tiveram. Desde o ano
de 1617 há a consciência de que na Europa há dois partidos religiosos:
evangélicos e católicos, o que virá a ser corroborado pela Paz da Westfália de 1648.
O conceito “evangélico” subsume luteranos e calvinistas. “Celebrar”,
nesse caso, é um paradoxo. Para os luteranos é motivo de reflexão para
verificar se, passados 500 anos, são fiéis ao solus Christus (somente Cristo) pelo qual lutaram os reformadores. Nos dias em que vivem (2011-2017) devem perguntar o que significa esse solus Christus em contexto, no qual o nome de Deus é “mercado”,
em que o alvo da ética não é a preservação da boa criação de Deus, em
que conceitos como “graça, “fé”, “escritura” precisam urgentemente ser
recuperadas e em que precisamos perguntar pelo rosto de Deus. Terá Deus o
rosto da “prosperidade” ou do crucificado e ressurreto?
Walter Altmann – A data de 31 de outubro de 1517
passou para a história como o nascedouro da Reforma. É assim celebrada
não apenas pelos luteranos, mas pelos protestantes em geral e, mesmo,
por igrejas pentecostais. A pesquisa, porém, já demonstrou que a
descoberta teológica de Lutero, que era professor de Bíblia, a respeito da justificação por graça e fé, consoante o apóstolo Paulo,
se deu já anos antes. E as consequências dessa descoberta foram sendo
desenvolvidas no decorrer dos anos posteriores, em sucessivos tratados
escritos por Lutero. A celebração não é, contudo, a
celebração da nova confissão religiosa que surgiu, pois a divisão da
cristandade não condiz com a vontade de Deus, mas apenas a renovada evocação dessa descoberta teológica,
que deve ser vista no contexto da caminhada do povo de Deus através dos
tempos. Por isso toda celebração deve vir acompanhada da reflexão
quanto à vivência autêntica da fé hoje. Ou seja, não pode consistir num
retorno a 1517, mas, ao contrário, evocando o acontecimento de 1517,
projetar-se à frente, com um compromisso renovado.
Cláudio Kupka – A Reforma Luterana é
um evento que não acontece isoladamente dos processos históricos de seu
tempo. Iniciativas de reforma na Igreja eram conhecidas. Havia um
clamor por uma fé mais acessível ao povo simples. Igualmente, o
humanismo renascentista postulava uma maior valorização do ser humano,
da sua capacidade de conhecimento e da sua dignidade. No campo
político-religioso, havia um clamor por maior independência em relação a
Roma acompanhado de um processo paralelo de fragmentação das nações da
Europa.
Lutero, ao se indispor contra uma prática religiosa
de seu tempo (a venda de indulgências) e ao se articular teologicamente
para fundamentar essa indignação, vai mobilizar paralelamente forças em
favor da causa da Reforma. Lutero vai se fixar nas
questões teológicas que o preocupam, mas o clima de mudanças
oportunizará uma série de transformações ao seu redor. Príncipes saxões,
humanistas e o povo o apoiarão. Lutero simbolizará, no
imaginário do povo, alguém com coragem para se contrapor a questões e
práticas que há muito careciam de uma revisão e que, até então, a Igreja
e o Império haviam abafado. Um exemplo é a tradução da Bíblia para o
alemão. Ao oportunizar ao povo conferir nas Escrituras se a pregação
feita em nome de Cristo era confiável, Lutero empreendeu uma tarefa bem maior
que o seu horizonte teológico. Sem pretender, ao unificar os dialetos e
um idioma único, acabou tornando-se um dos formadores do idioma alemão
assim como o conhecemos hoje. O acesso à Bíblia, por parte do leigo,
simbolizou também o aceso ao saber e o direito de questionar.
Muitas dessas ideias são a base da Modernidade. Questões como relação
entre Igreja e Estado, liberdade humana, educação e cidadania são até
hoje ideias estruturadoras de nossa sociedade. Devemos muito disso à
Reforma.
IHU On-Line – Como o luteranismo se
relaciona com outras religiões como as de matriz africana, por exemplo?
Além do ecumenismo, percebe algum avanço no diálogo inter-religioso?
Martin Dreher – Há entre luteranos a consciência de
que o diálogo inter-religioso é necessário por causa da preservação do
planeta e da espécie humana. Em termos religiosos, o mundo afro é
tremendamente multifacetado. Por isso os diálogos, quando existem, só
podem ser feitos em nível local e não na forma de diálogo com
federações. Ele é bastante difícil de ser abarcado. No tocante ao
diálogo entre cristãos, vejo-o em compasso de espera. Se olharmos para
dentro de cada uma das confissões cristãs,
vemo-las envoltas em uma série de crises internas, resultantes do que
se vem designando de pós-modernidade, onde a base da sociedade é o
mercado. Como sobreviver no mercado religioso? O diálogo continua, mas
no geral vai ser esforço de pequenos grupos.
Walter Altmann – Todas as crenças e convicções
religiosas merecem igual respeito, incluindo-se aí, obviamente, também
as religiões afrodescendentes. Um dos fenômenos mais preocupantes hoje
no seio do cristianismo, e das religiões em geral, é a emergência de
segmentos radicalizados que absolutizam sua própria compreensão religiosa
e tentam impô-las às pessoas de outras crenças, por vezes com o uso da
violência. Qualquer fundamentalismo é uma violação do próprio evangelho.
Por isso a relação com outras religiões deve dar-se em atitude
dialogal, em que cada parte tem a plena liberdade de expor suas
convicções, ação acompanhada do esforço sincero por compreender as
convicções alheias e delas aprender. Deve se buscar, inclusive, a
cooperação inter-religiosa em ações sociais, na defesa da ética, na
criação de uma cultura de paz e no cuidado para com a boa criação de
Deus. Ou seja, há avanços no diálogo inter-religioso, mas também
tentações e perigos bem evidentes.
IHU On-Line – Quais os desafios para que o ecumenismo se estabeleça de forma plena?
Martin Dreher – O principal desafio se chama
“poder”. As diversas denominações estão envoltas em questões internas,
tentativas de resposta aos desafios lançados pela pós-modernidade, na
qual tudo quer ser regido pelo mercado. Há muita insegurança. Quando há
insegurança, um grupo procura sobrepor-se ao outro. Com isso o diálogo
com os diferentes de fora do grupo passa para um segundo plano.
Walter Altmann – O ecumenismo avançou
muito nos últimos cem anos. Muitos dos dissensos teológicos puderam ser
superados ou, pelo menos, vistos sob uma nova luz. Há entre as
principais confissões cristãs um crescente respeito mútuo e disposição
para a cooperação. Ao mesmo tempo, porém, registra-se, em tempos
pós-modernos, um processo de intensa fragmentação religiosa, fenômeno
que apresenta um grande desafio ao movimento ecumênico. Uma iniciativa
mais recente é a do chamado Fórum Cristão Global
(ou Mundial), em que praticamente todas as famílias confessionais
cristãs (ortodoxos, católicos, protestantes ecumênicos, protestantes
evangélicas e pentecostais) participam com representações oficiais.
Regressei recentemente de Manado, Indonésia, do segundo encontro global desse Fórum (o primeiro ocorreu em Limuru,
Quênia, em 2007). Deve-se observar também que a institucionalidade de
nossas igrejas não poucas vezes resiste a assumir as consequências que
são sugeridas ou, mesmo, testadas pelos diálogos teológicos e pela
prática das comunidades locais.
IHU On-Line – Quais as diferenças entre as igrejas da IECLB e da IELB? Há uma aproximação entre ambas?
Martin Dreher – O luteranismo se
estabeleceu no Brasil a partir do ingresso de imigrantes dessa
confissão no século XIX. Como não tinham acompanhamento
eclesiástico-institucional desde suas pátrias de origem, organizaram sua
própria vida religiosa na forma de comunidades eclesiais de base.
Somente mais tarde, quando as colônias dos imigrantes já tinham certa
prosperidade econômica, vieram pastores que terminaram por formar
estruturas eclesiais distintas e concorrentes entre si, hoje designadas
de Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB e Igreja Evangélica Luterana do Brasil – IELB.
Enquanto a IECLB esteve mais exposta ao pensamento da Ilustração, a IELB
esteve mais exposta ao Romantismo e ao neoconfessionalismo do século
XIX. Destaco, contudo, que minha apreciação tem acento no “mais”.
Romantismo e confessionalismo estiveram também presentes na IECLB e aspectos da Ilustração se fazem presentes na IELB.
Há alguns distintivos que estão sendo trabalhados entre as duas
denominações: o caráter da Bíblia, a ordenação feminina, a celebração
aberta ou restrita da eucaristia. No todo, devo dizer que há mais
aproximação do que separação.
Walter Altmann – Há diferenças históricas, no sentido de que os laços de comunhão confessional da IECLB foram tradicionalmente com igrejas evangélicas na Alemanha (embora hoje inseridos na vida da Federação Luterana Mundial – FLM como comunhão luterana em nível global), enquanto a IELB é oriunda da atuação de missionários norte-americanos do chamado Sínodo de Missúri entre imigrantes alemães do Brasil e seus descendentes. De outra parte, a IELB adota uma postura confessionalista que, em boa medida, se restringe à sua própria denominação, enquanto a IECLB entende a confessionalidade luterana como essencialmente vinculada ao empenho ecumênico. Na leitura da Escritura, a IELB adota uma interpretação mais literal, enquanto que a IECLB
acolhe os modernos métodos críticos de exegese, centrando-se mais no
cerne da Escritura do que na letra, ou seja, ela aceita como norma
“aquilo que promove a Cristo”, distinto de seu arcabouço histórico e
cultural. Por conseguinte, para a IELB também é mais difícil de aceitar a IECLB
plenamente como igreja luterana do que vice-versa. Há, porém,
cooperação entre as duas igrejas, que, por exemplo, publicam
conjuntamente as obras de Lutero em português e um devocionário comum para as famílias luteranas.
IHU On-Line – Em outra entrevista que nos
concedeu, o senhor disse que Lutero queria uma Reforma da Teologia.
Hoje, quase 500 anos depois, vê necessidade de uma nova reforma
teológica?
Martin Dreher – A teologia tem que passar por constante reforma.
Ela é tentativa de dar razão do que a Igreja crê, em diferentes
contextos. Não podemos nos contentar com as respostas de gerações
passadas. Cada geração é chamada a confessar sua fé ali onde vive e
dizer do significado e da importância de Jesus Cristo. A boa notícia a respeito de Jesus Cristo
é que Deus aceita o ser humano incondicionalmente. Num mundo em que as
pessoas cada vez mais valem pelo que têm e consomem, essa mensagem é
fundamental, também para as ofertas que se faz em nome de Jesus,
principalmente aquelas que prometem “prosperidade”.
IHU On-Line – Hoje, quase 500 anos depois, vê necessidade de uma nova reforma teológica?
Walter Altmann – Um dos preceitos da Reforma é que
“a Igreja da Reforma deve ser vista sempre como Igreja em reforma”. Não
pode haver uma compreensão estanque do Evangelho, pois a teologia sempre
se dá como um movimento entre dois polos, o da fonte da fé conforme
testemunhada na Escritura e o contexto atual. Como este é cambiante, a teologia deve permanentemente se reavaliar
e atualizar suas percepções (eventualmente também corrigi-las). Não
vejo, porém, que necessitemos uma reforma teológica no sentido da que
ocorreu no século XVI. Antes, o que necessitamos é intensificar, na
prática e na reflexão teológica, o movimento ecumênico de busca da
unidade, que já temos em Cristo, mas que vivemos em separado em nossas
igrejas.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a recente visita do Papa Bento XVI no mosteiro de Erfurt, onde Lutero foi monge?
Martin Dreher – Bem. Bento XVI, o bávaro (e entre os bávaros estavam os principais polemistas em relação a Lutero, basta pensar em Eck de Ingolstadt), fez uma visita ao Martin Luder,
monge agostiniano eremita da observância, que ali viveu antes de 1517,
filho obediente da igreja romana, cheio de dúvidas e que pouco
questionava. Não visitou o Lutero de Wittenberg, nem o do Debate de Heildelberg (1518), quando passou a assinar “Martinus Eleutherius”, Lutherus, o liberto. Não falou em “reforma”, também não falou na Dominus Iesus. Foi uma visita política.
Walter Altmann – A visita foi obviamente significativa, na medida em que demonstrou um apreço do Papa Bento XVI pelo monge agostianiano Martinho Lutero. Nesse sentido, contribui para a continuidade do processo de estreitamento de relações entre a Igreja Católica e as igrejas da Reforma. Contudo, deve-se observar também que a visita se deu ao convento agostiniano de Erfurt,
onde Lutero recebeu sua formação espiritual e bíblico-teológica antes
dos eventos da Reforma. Muito mais significativa seria, como é
igualmente óbvio, uma visita a Wittenberg,
que foi a cidade em que Lutero atuou como reformador. Quem sabe em
2017? Seria algo de extraordinário impacto nas relações ecumênicas.
IHU On-Line – Quais as perspectivas e os desafios do luteranismo no Brasil?
Martin Dreher – O luteranismo é pequena denominação
no Brasil. Está mais restrito ao Brasil Meridional. É aqui que tem e que
pode ter presença mais destacada. Deu e dá importante contribuição na
área educacional. Sua teologia merece reconhecimento. Sua ética diz que
vale a pena lutar pelo melhoramento deste mundo que é e continua a ser
amado por Deus. Sua afirmação de que Deus se revela sob o contrário do
que Ele é permite-lhe olhar para onde Deus olha, para o insignificante e
desprezado e aliar-se a todos aqueles que dizem da importância dos
mínimos.
Walter Altmann – Muito sumariamente, diria que o luteranismo no Brasil, na sua vertente na IECLB, busca ser fiel a seu transcurso histórico de vivenciar o evangelho fortalecendo suas comunidades e exercitando seu compromisso ecumênico
com as demais igrejas. Ao mesmo tempo, percebe encontrar-se num
contexto de crescente pluralismo e competitividade religiosa. Por isso,
ao enfatizar mais e mais que a missão é parte essencial da vida da
Igreja, busca assumi-la em espírito não proselitista, mas sim ecumênico.
Também se sente mais e mais desafiada a transmitir a voz evangélica
para dentro dos desafios sociais e políticos do país.
Cláudio Kupka – O luteranismo representa hoje uma
voz que clama para a centralidade da teologia da graça no mundo cristão.
Há um verdadeiro redescobrimento dos fundamentos da primeira reforma,
como poderíamos denominar a Reforma Luterana. Setores
do protestantismo se distanciaram dos fundamentos da Reforma. Há quem
diga que o neopentecostalismo não mais represente parte do cristianismo
na medida em que, em seus cultos, a graça de Deus (leiam-se aqui bênçãos
de prosperidade) é comercializada.
É verdade que as duas igrejas luteranas (IECLB e IELB)
têm acentos diferenciados nesta caminhada. Seja enfatizando a
evangelização e a relevância da pregação da Palavra e espiritualidade,
seja vivenciando um conceito de missão mais amplo, onde diaconia, ética e
vida comunitária traduzem a presença graciosa de Deus no mundo, cremos
ser uma voz relevante no espaço religioso e na sociedade. Luteranos têm
abertura para o diálogo com as ciências e têm, no aprofundamento da
reflexão ética, um espaço de diálogo das questões que ocupam na agenda
de nossa vivência como sociedade brasileira hoje. Os luteranos no Brasil
são percentualmente pouco expressivos, mas que têm contribuído de forma
histórica na oferta de educação de qualidade e em ações diaconais e
sociais, promovendo a melhoria da qualidade de vida e a formação para a
cidadania de importantes segmentos da sociedade brasileira.
IHU On-Line – Que atividades estão sendo preparadas para celebrar os 500 anos da Reforma, em 2017?
Cláudio Kupka – O evento que marcou a abertura das comemorações dos 500 anos da Reforma Luterana,
ocorrido no último dia 18 de outubro, foi uma das ações principais.
Nele pudemos dar início a um conjunto de ações visando dar maior
visibilidade à contribuição luterana para dentro do contexto cristão e
para a própria sociedade. Nossa iniciativa no Brasil tem relação também
com ações semelhantes que serão feitas em muitos países e que culminarão
em 2017 com ações em âmbito global. A comunicação e o fortalecimento
dos vínculos institucionais são muito importantes nesse processo.
Luteranos, em geral, são tímidos ao ocupar o seu espaço e falar da
relevância de sua tradição. Precisam, de tempos em tempos, mobilizar
esforços para tornarem-se mais conhecidos na sociedade. É bom lembrar
que sofremos o fenômeno do “sequestro” do nome evangélico por parte dos
movimentos neopentecostais.
Nesse sentido, com tais eventos, promovemos o conhecimento da
contribuição da tradição luterana para o ser Igreja hoje. Temos em mente
eventos de reflexão teológica, publicações, encontros para reunir o
povo luterano e marcas no espaço público de nossas cidades, como praças
ou jardins que lembrem a Reforma Luterana.
No evento de 18 de outubro, lançamos um vídeo comemorativo e um selo que nos acompanhará até o Jubileu em 2017.
IHU On-Line – Como o senhor vê a articulação nacional entre as duas religiões luteranas, IECLB e IELB, na celebração da Reforma?
Cláudio Kupka – Essa articulação tem sido um bom
exercício de caminhada conjunta. Nem sempre convergimos em todos os
aspectos, é verdade. Temos nossos “estranhamentos históricos”. No
entanto, desde o início da mobilização, temos experimentado uma alegria e
confiança crescente em nossos diálogos cheios de gratidão a Deus pelos
sinais positivos da caminhada. Estamos experimentando um conhecimento
mútuo de nossas vocações e talentos. A área de publicação de obras de
Lutero tem sido um campo tradicional de cooperação. Agora é hora de
avançar em outros campos através de iniciativas que vão continuar a
exigir de nós capacidade de diálogo e cooperação. Tenho muita esperança
que vamos no aproximar mais através dessa ação conjunta.
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