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sexta-feira, 13 de maio de 2011

Mínima nota sobre o Pai Nosso no Novo Testamento em Grego

Codex Sinaiticus, Séc. IV. Atualmente, em Londres.

O próximo passo em meu propósito de apresentar uma mínima reflexão sobre a oração do Pai Nosso neste blog é mencionar como ela aparece no próprio texto do Novo Testamento. Ao leitor que não se interessa por esses detalhes, sugiro que aguarde as próximas postagens ou leia a anterior.  Ou, ao menos, aproveite as imagens e, quem sabe, o áudio que está ao final da postagem, com a oração pronunciada em grego. A um eventual leitor especialista em Crítica Textual, aviso que, embora tenha estudado o assunto em algumas disciplinas, não é minha especialidade. Portanto, qualquer contribuição será muito bem vinda e proveitosa. Também, peço que não se julgue este blog por esta postagem, que é bem atípica.

São dois, então, os trechos que me interessam: Mateus 6:9-13 e Lucas 11:2-4.

A oração transmitida em Mateus não apresenta muitas variações nas lições dos manuscritos (minha referência para essa e todas as outras afirmações concernentes à crítica textual é a seguinte edição crítica: THE GREEK NEW TESTAMENT. Fourth Revised Edition Edited by Barbara Aland et ali. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2000.) A bem da verdade, apenas uma variação considerável foi encontrada. Muitos manuscritos importantes omitem o trecho final que costumamos usar: "Porque teu é o reino e o poder e a glória para sempre. Amém." Os editores observam que essa frase provém de 1 Crônicas 29:11-13. É muito provável, então, que algum copista a tenha tomado emprestado do texto veterotestamentário e inserido ao final da oração de propósito (ou que fosse uma prática acrescentá-lo na realização da oração em voz alta e que, posteriormente, esse costume se tenha transferido ao texto - essa ideia eu acho que tive agora).


Página de Mateus no Codex Sinaiticus (Séc. IV). As setas indicam
o início e fim da oração do Pai Nosso.

Quanto ao texto em Lucas, há mais problemas. Os editores (Barbara e Kurt Aland e cia.) tomam uma versão reduzida, encontrada em um importante papiro do século III (Papiro 75), no Códice Sinaítico (séc. IV) e em alguns outros importantes manuscritos, como sendo a que mais se aproxima do original. Se bem interpreto o resultado do trabalho feito, compreendo que o entendimento deles foi o seguinte: o texto original de Lucas era reduzido, mas os copistas tentaram harmonizá-lo com o de Mateus, agregando elementos da oração tal qual apresentada no livro desse evangelista. Um exemplo: Nos manuscritos recém mencionados (e na edição, portanto), o vocativo inicial é simplesmente "pai" (páter), enquanto outros tantos manuscritos trazem a expressão como em Mateus: "Pai nosso que estás nos céus" (páter hemôn ho en toîs ouranoîs). A expressão "seja feita a tua vontade..." também não se encontra na edição, por não se apresentar no papiro 75 (sobretudo por causa disso, suponho, uma vez que esta sim aparece no Códice Sinaítico.) Há duas variações na petição relativa ao "pão nosso". Mateus usa o imperativo no aoristo e o termo "hoje", sémeron, ao final da frase, enquanto Lucas usa o imperativo no presente (Uma mudança irrelevante, a meu ver. Inclusive, notei que, embora os Aland não o anotem, o Sinaítico também apresenta o imperativo aoristo também no texto de Lucas) e, ao final, utiliza uma expressão talvez bem traduzida como "diariamente", tò kath'heméran. No pedido de perdão, Mateus usa o sintagma tà ofeilémata, "as dívidas", enquanto Lucas usa tàs hamartías, "os pecados". Quanto aos que nós perdoamos, Mateus se refere a eles por um substantivo: aos devedores, toîs ofeilétais. Já Lucas usa uma expressão com particípio e acrescenta um "todo": "a todo que deve a nós", pantì ofeílonti hemîn. A última frase de Mateus, "mas livra-nos do mal", não aparece na edição do texto lucano, por não se fazer presente no papiro 75, na primeira versão do Sinaítico e em outros manuscritos importantes. Bem, há outras diferenças mínimas nos textos e alguns acréscimos interessantes em manuscritos menos importantes, mas não menciono tudo, afinal, isto é um blog simplesmente.

Resta saber como consideraremos o problema. Não há como negar o fato de que o texto em Lucas apresenta variações importantes em alguns manuscritos muito antigos. Será certa a interpretação que a equipe dos Aland dá para o fenômeno? O texto original da oração em Lucas seria realmente menor e acrescido de expressões provindas de Mateus em manuscritos posteriores? Bem, a hipótese é bem plausível. Outra hipótese, porém, me ocorre (sem muito rigor, mas apresentável, suponho): Talvez o texto da oração em Lucas fosse tão completo quanto o de Mateus, assim como aparece em alguns manuscritos, mas, por se tratar de um texto tão conhecido, os copistas de alguns exemplares muito antigos (papiro 75, por exemplo) podem ter se desleixado no trecho. Ao escrever "páter", sua mente já supunha toda a frase que costumava recitar diariamente, "páter hemôn ho...". Então, tendo lido "páter", já passavam os olhos e as mãos à cópia que faziam, imaginavam toda a expressão e, por descuido, achavam já tê-la escrito toda ao voltar a olhar para o texto fonte. (Curioso o fato de que, no Sinaítico, em Mateus, Páter aparece abreviado - PER - enquanto, em Lucas, aparece toda a palavra). Uma questão em favor desta hipótese seria: Se os copistas quiseram harmonizar o texto de Lucas ao de Mateus, por que não o fizeram com respeito ao vocabulário? Por que não trocaram hamartías por ofeilémata? Por que não regularizaram os verbos (substituindo dídou por dós, afíomen por afékamen...)? Claro, é só uma hipótese que formulei agora e que não pretendo defender, pois daria muito trabalho.

Soma-se ao problema, o fato de que, provavelmente, esse texto que temos da oração seja uma tradução do discurso de Jesus feito em aramaico. (Sei que alguns insistem que Jesus falava em grego na Judeia, mas não me vejo convencido, embora reconheça a possibilidade de que ele fosse, no mínimo, bilíngue.)

Seja como for, o importante é que temos a oração preservada. Aparentemente, mais bem preservada na transmissão do texto de Mateus, que serve de base para as versões que hoje escutamos nas igrejas e lares cristãos.

E se esta breve exposição não serviu para elucidar problema algum (Acabo de me dar conta que os não-especialistas em Novo Testamento devem ter se entediado, e os especialistas devem ter sentido falta de novidades!), ao menos serve para lembrar que a Bíblia que temos hoje é resultado do esforço de muitos. Em minhas conversas várias, percebo que os cristãos que só usam suas Bíblias bonitinhas em português não fazem ideia do trabalho dos que lidam com os textos em suas línguas originais, dos tradutores inclusive. Já estes últimos costumam lidar somente com o texto já editado, não considerando o trabalho dos editores e críticos textuais, que se esforçaram muitíssimo entre os manuscritos. Os editores e críticos textuais, por sua vez, não se lembram... não, mentira, eles se lembram sim... do trabalho penoso dos copistas. E os copistas da antiguidade e Idade Média, espero que tenham valorizado o trabalho daqueles primeiros cristãos, que com afinco nos transmitiram palavras tão especiais.

Esta nota serviu também para indicar o texto que utilizarei em futura postagem com comentário breve: a oração do Pai Nosso, tal qual transmitida no Evangelho de Mateus, conforme a edição dos Aland (talvez com alguma referência a um termo do texto de Lucas em comparação).

Para terminar, deixo o som do Pai Nosso, conforme Mateus, em grego. (Perdoem a pronúncia improvisada... "porca e avacalhada", como dizia um professor meu. Acontece que não há mais falantes nativos de grego antigo com quem possamos praticar.) O primeiro áudio traz o texto falado, simplesmente pronunciado por mim. O segundo, tem uma melodia que usei para decorar o texto (Pobre de minha esposa que me escutou cantando isso pela casa vários dias!). Não fica bonito não, mas ajuda!

Pai Nosso em grego, falado:
Pai Nosso em grego, com melodia para facilitar a memorização:

P.S.: Depois posto algo mais tranquilo para descansar a mente, além de uma música para aliviar os ouvidos.

2 comentários:

  1. Olá César.
    Vim retribuir sua visita e acabei conhecendo um belo blog, com uma saborosa proposta (perdão pelo trocadilho)!
    Tornei-me seguidor.
    Peço autorização para republicar este post em meu blog.
    Um abração,
    Que o Senhor glorifique Seu nome em sua vida!
    Alberto Oliveira

    http://www.ecclesiareformanda.blogspot.com/

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  2. Alberto,
    Obrigado pela visita! Esteja à vontade para republicar qualquer post. Mencionando a fonte, tá valendo!
    Um abraço fraterno!
    Cesar

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